quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Caos

Caos, em gregos Kháos, do verbo khaíein, abrir-se, entreabrir-se, significa abismo insondável. Ovídio chamou-o rudis indigestaque moles, massa informe e confusa. Consoante Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o Caos é “a personificação do vazio primordial, anterior à criação, quando a ordem anda não havia sido imposta aos elementos do mundo”.[1] Em Gênesis1:2 pode-se ver:
“A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a faze do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas”.
Tratava-se do Caos primordial, antes da criação do mundo, realizada por Javé, a partir do nada. Na cosmogonia egípcia, o Caos é uma energia poderosa do mundo informe, que cinge a criação ordenada, como o oceano circula a terra. Existia antes da criação e coexiste com o mundo formal, envolvendo-o como uma imensa e inexaurível reserva de energias, nas quais se dissolverão as formas nos fins dos tempos. Na tradição chinesa, o Caos é o espaço homogêneo, anterior à divisão em quatro horizontes, que equivale à criação do mundo. Esta divisão marca a passagem ao diferenciado e a possibilidade de orientação, constituindo-se na base de toda a organização do cosmo. Estar desorientado é entrar no Caos, de onde não se pode sair, a não ser pela intervenção de um pensamento ativo, que atua energicamente no elemento primordial.
Do Caos grego, dotado de grande energia prolífica, saíram Géia (Terra), Tártaro (Inferno) e Eros (Amor).
Géia (Gaia)
Géia, em grego Gaia, cuja raiz etimológica ainda se desconhece, é a Terra, concebida como elemento primordial e deusa cósmica, diferenciando-se assim, teoricamente, de Deméter, a terra cultivada. Géia de apõe, simbolicamente, como princípio passivo ao princípio ativo; como aspecto feminino ao aspecto masculino; como obscuridade à luz; como Yin ao Yang, como anima ao animus; como densidade, fixação e condensação à natureza sutil e volátil, isto é, à dissolução. Geia suporta, enquanto Úrano, o Céu, a cobre. Dela nascem todos os seres, porque Géia é mulher e mãe. Suas virtude básicas são a doçura, a firmeza cordata e duradoura, não se podendo omitir a humildade, que, etimologicamente, prende-se a húmus, “a terra”, de que o homo, “homem”, que igualmente provém de húmus, foi modelado. Ela é a fêmea penetrada pela charrua e pelo arado, fecundada pela chuva ou pelo sangue, que são o spérma, a semente do Céu. Como matriz, concebe todos os seres, as fontes, os minerais e os vegetais. Geia simboliza a função materna: é a Tellus Mater, a Mãe-Terra. Concede e retoma a vida. Prostrando-se ao solo, exclama Jó 1:21:“Nu saí do ventre de minha mãe; nu para lá retornarei”. Reuertere ad locum tuum, volta a teu lugar, é um lembrete que alguns cemitérios gostam de estampar. “Rasteja para a terra, tua mãe” (Rig Veda, X, 18:10), diz o poeta védico ao morto. Assimilada à mãe, a Terra é símbolo de fecundidade e de regeneração, como escreveu Ésquilo nas Coéforas, 127-128:
“A própria Terra que, sozinha, gera todos os seres, alimenta-os e depois recebe deles novamente o gérmen fecundo.”
Consoante da Teogonia, a própria Géia gerou Úrano que a cobriu e deu nascimento aos deuses. Esta primeira hierogamia, quer dizer, casamento sagrado, foi imitada pelos deuses, pelos homens e pelos animais. Como origem e matriz da vida, Géia recebeu o nome de Magna Mater, a Grande Mãe. Guardiã da semente e da vida, em todas as culturas sempre houve “enterros” simbólicos, análogos às imersões batismais, seja com a finalidade de fortalecer as energias ou curar, seja como rito de iniciação. De toda forma, esse regressus ad uterum, essa descida ao útero da terra, tem sempre o mesmo significado religioso: a regeneração pelo contato com as energias telúricas; morrer para uma forma de vida, a fim de renascer pra uma vida nova e fecunda. É por isso que nos Mistérios de Elêusis se efetuava uma katábasis eis ántron, uma descida à caverna, onde se dava um novo nascimento. Para vencer o gigante Anteu, Héracles teve que segurá-lo no ar e sufocá-lo, já que o monstro readquiria todas as suas forças e energias, cada vez que tocava a Terra, sua mãe. Mater, mãe, tem a mesma raiz que matéria, “madeira”: quando se quer atrair a sorte ou afastar o azar, bate-se três vezes na matéria, na madeira, isto é, na mater, detentora das grandes energias e de um mana poderoso.
Tártaro
Tártaro, em grego tártaros, de etimologia desconhecida, até o momento, é o local mais profundo das entranhas da terra, localizado muito abaixo do próprio Hades. A distância que separa o Hades do Tártaro é a mesma existe entre Géia, a Terra, e Úrano, o Céu. Um pouco mais tarde, quando o Hades foi dividido em três compartimentos, Campos Elíseos, local onde ficavam por algum tempo dos que os que pouco tinham a purgar, Érebo, residência também temporária dos que tinham a sofrer, o Tártaro se tornou o local de suplício permanente dos grandes criminosos, mortais e imortais. Na Ilíada, porém, quando Zeus proíbe os Imortais de se imiscuírem nas batalhas entre aqueus e troianos, e ameaça lançar os recalcitrantes nas profundezas do Tártaro, observa-se que este é perfeito sinônimo de Hades, aonde iam ter, para todo o sempre, sem prêmio nem castigo, todas as almas. A divisão do Hades em compartimentos é pós-homérica.
Em Hesíodo a idéia de permanência eterna na outra vida já parece também existir, pelos menos alguns deuses e mortais: lá foram lançados os Titãs e as almas dos homens da Idade de Bronze. Os Ciclopes tiveram mais sorte: duas vezes lançados no Tártaro, duas vezes de lá foram libertados, o que demonstra que para algumas divindades o Tártaro podia funcionar apenas como prisão temporária, ao menos até Hesíodo. Seja como for, é no Tártaro que as diferentes gerações divinas lançam sucessivamente seus inimigos, como os Ciclopes e depois os Titãs.
Eros
Já escrevi um artigo inteiro dedicado somente à ele, então postarei aqui somente o link para esse post: http://flaviasilva.wordpress.com/2008/05/14/eros-cupiado-deus-grego-do-amor-mitologia-grega/

Caos gerou sozinho as trevas profundas, Érebo e Nix, enquanto de Nix nasceu a luz radiante, Éter e Hemera.
Assim, a matéria informe, confusa e opaca, o Caos, gera primeiramente as trevas. É que para Hesíodo o cosmo se desenvolve ciclicamente, de baixo para cima, passando das trevas à luz. É natural, por isso mesmo, que a luz, Éter e Hemera, tenha sido gerada pelas trevas, Nix, a Noite. Observe-se ainda a conjugação dos opostos: Érebo e Nix, as trevas, se opõem à luz, mas é das trevas, Nix, que nascerá a luz, Éter e Hemera. Esses pares antiéticos unem-se e interferem, cada um triunfando sobre o outro, num eterna transformação cíclica.
Também em Gênesis 1:2-3 a luz existiu depois das trevas:“A terra, porém, estava informe e vazia, e as trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas. E Deus disse:’Exista a luz’. E a luz existiu”.
Érebo
Érebo, em grego érebos, designa as trevas infernais. Trata-se de uma concepção indo-européia, cuja raiz é regwos, que aparece em sânscrito como rájas, espaço obscuro, no gótico riqiz, obscuridade, e no armênio erek, crepúsculo. Bem mais tarde, como já se disse, quando o Hades, o mundo infernal, foi “geograficamente” dividido em três compartimentos, Érebo ocupou o centro, à igual distância entre os Campos Elíseos e o Tártaro.
Nix
Nix em grego é a personificação e a deusa da noite, cuja raiz é o indo-europeu nokwt - escuridão. Habita o extremo Oeste, além do país de Atlas. Enquanto Érebo personifica as trevas subterrâneas, inferiores, Nix personifica as trevas superiores, de cima.
Percorre o céu, coberta por um manto sombrio, sobre um carro puxado por quatro cavalos negros e sempre acompanhada das Queres. À noite só se podem imolar ovelhas negras. Nix simboliza o tempo das gestações, das germinações e das conspirações, que vão surgir à luz do dia em manifestações de vida. É muito rica em todas as potencialidades de existência, mas entrar na noite é regressar ao indeterminado, onde se misturar pesadelos, íncubos, súcubos e monstros. Símbolo do inconsciente, é no sono da noite que aquele se libera.

Éter
Éter, em grego aithér do verbo aíthein, brilhar, iluminar, de onde “o brilhante”. Éter é a camada superior do cosmo, posicionado entre Urano (Céu) e o Ar e, por isso mesmo, personifica o céu superior, onde a luz é mais pura que na camada mais próxima da terra, dominada pelo Ar, que nada tem a ver com Éter.
Hemera
Em grego, Hemerá, cuja base é o indo-europeu amor, “claridade”. Hemera é a personificação do Dia, concebido como divindade feminina com Éter um par, enquanto Érebo e Nix formam outro.

Géia, sem concurso de nenhum deus, gerou Urano (Céu), Montes e Pontos (Mar). Aliás, como Grande Mãe, uma das características de Géia é a partenogênese.
Urano
Em grego, Uranós. Não mais se aceitando a aproximação com Vanura, talvez se pudesse cortejar o vocábulo grego com worsanós, sânscrito varsa-, “chuva”, de onde Urano seria “o que chove”, fecundando Géia. É a personificação Fo Céu, enquanto elemento fecundador de Géia. Urano (Céu) era concebido como um hemisfério, a abóbada celeste, que cobria a Terra, concebida como esférica, mas achatada: entre ambos se interpunham o Éter e o Ar e, nas profundezas de Géia, localizava-se o Tártaro, bem abaixo do próprio Hades. Do ponto de vista simbólico, o deus do Céu traduz uma proliferação criadora desmedida e indiferenciada, cuja abundância acaba por destruir o que foi gerado. Urano caracteriza, assim, a fase inicial de qualquer ação, com alternância de exaltação e depressão, de impulso e queda, de vida e morte dos projetos.
Deus celeste indo-europeu, símbolo da abundância, o deus do Céu é representado pelo touro. Sua fertilidade, entretanto, é perigosa, além de inútil. A mutilação de Urano por Crono põe cobro a uma odiosa e estéril fecundidade e faz surgir Afrodite, nascida do esperma ensangüentado do deus, a qual introduz a ordem e a fixação das espécies, impossibilitando qualquer procriação desordenada e nociva. André Virel, com base na mitologia grega, caracterizou as três fases da evolução criadora: Urano (sem equivalente no mito latino) é a efervescência caótica e indiferenciada, chamada cosmogonia; Crono (Saturno) é o podador, corta e separa. Com um golpe de foice ceifa os órgãos de seu pai, pondo fim a secreções indefinidas. Ele é o tempo da paralisação. É o regulador que bloqueia qualquer criação no universo. É o tempo simétrico, o tempo da identidade. Sua fase denomina-se esquizogenia. O reino de Zeus (Júpiter) se caracteriza por uma nova partida organizada e ordenada e não mais caótica e anárquica: a esta fase A. Virel chama autogenia.[2] Após a descontinuidade, a criação e a evolução retomam seu caminho.

Um comentário:

Ishani Devi Dase Miranda disse...

Muito com seu blogger sobre Mitologia Greco-romana.
Gosto de ver um jovem como você interessado por sultura de povos antigos. Parabéns. Ishani D.D.